quarta-feira, 16 de junho de 2010

Para Sylvia Plath




VISITA

Lucas, um amigo, um
daqueles três ou quatro que ficam para sempre
como um eu isolado,
uma pedra no leito do rio
submetida a todas as mudanças, tornou-se teu amigo.
Ouvi falar disso, alarmado. Desperdiçava
a minha juventude lá longe num escritório perto de Slough,
manhã e tarde entre Slough e Holborn,
juntando o ordenado para custear o salto para a liberdade
e o outro lado da terra – uma queda livre
para me desfazer da minha crisálida num torvelinho.
Nos fins-de-semana reingressava
na Alma Mater. A minha namorada
tinha o mesmo professor e uma aula todas as semanas
contigo e a tua rival americana.
Destestava-te. Alimentou com instantâneos
teus e dela não sei que
inflamável celulóide para o meu futuro
silencioso e insaciável, a minha cabra-cega,
luz interior de procura. Depois da meia-noite
fiquei num jardim com o meu amigo,
a atirar com torrões de terra a uma janela escura.

Bêbado, ele tinha certeza que era a tua.
Meio bêbado, eu não sabia que ele se enganava.
Nem sabia que estava a ser avaliado,
para o principal papel masculino do teu drama,
a mimar os primeiros gestos, tão fáceis
como se estivesse de olhos fechados para sentir melhor o meu papel.

Como uma marioneta puxada por fios,
ou as pernas electrocutadas de uma rã morta.
Dancei por entre aqueles movimentos – observado e avaliado
somente pela escuridão cheia de estrelas e uma sombra.
Desconhecido para ti e sem te conhecer.
Desejando encontrar-te, e perdendo-te, e perdendo-te outra vez.
Lançando terra a um vidro que não podia proteger-te
porque tu não estavas lá.

Dez anos depois da tua morte
encontro numa página do teu diário, como nunca antes,
a comoção da tua alegria
quando soubeste disso. Depois a comoção
das tuas orações. E sob essas orações o pânico
de que as orações não produzissem o milagre,
depois, debaixo do pânico, o pesadelo
que veio a rolar para te esmagar:
a tua alternativa – o velho e impensável
desespero e a nova agonia
juntos num mesmo inferno familiar.

De repente leio tudo isto –
as tuas palavras, autênticas como se flutuassem,
da tua garganta e língua para se plasmarem numa página –
No exacto momento em que a tua filha, já há muitos anos,
vagueando até onde eu trabalhava sozinho,
olhou-me fixamente no rosto, confusa, e perguntou de repente:
“Pai, onde está a Mãe?” A terra gelada
do jardim, como eu cravei as minhas mãos nela.
À minha volta o gigantesco relógio de geada
dessa meia-noite. E em algum lugar
dentro dela, sem querer sentir nada,
a pulsação de uma febre. Em algum lugar
dentro da dormente terra
o nosso futuro a tentar acontecer.
Ergo o olhar – como para encontrar a tua voz
com o seu urgente futuro
que rebentou dentro de mim. Depois volto a olhar
o livro com palavras impressas.
Há dez anos que estás morta. Isto é apenas uma história.
A tua história. A minha história.




UM VESTIDO DE MALHA COR-DE-ROSA

No teu vestido de malha cor-de-rosa
e antes que alguma coisa pudesse macular alguma coisa
estavas no altar. Bloomsday.

Chovia – por isso, a única coisa que levava
com menos de três anos de uso
era um chapéu de chuva acabado de comprar.
A minha gravata – solitária, pesada, negro veterano da RAF –
era o símbolo gasto de uma gravata.
O meu casaco de bombazina – três vezes tingido de preto, estafado
mal conseguia aguentar-se.

Eu era um útil genro do pós-guerra!
Não era bem o Príncipe-Rã. Talvez mais o Guardador de Porcos
a roubar desta filha os sonhos de grandeza
num futuro iluminado pelos focos das torres de vigia.

Nenhuma cerimónia podia recrutar-me,
fora deste uniforme. Vestia todo o meu guarda-roupa –
À exceção de uma ou outra peça alternativa, igual às outras.
O meu casamento, tal como a Natureza, queria esconder-se.
Mesmo assim – se nos íamos casar
era melhor que fosse na Abadia de Westminster. Por que não?
O deão explicou-nos a razão. Foi assim que
eu soube que tinha uma igreja de paróquia.
São Jorge dos Limpa-Chaminés.
Tivemos que apertar-nos para caber no casamento.
A tua mãe, corajosa até nesta
Jogada de Negócios Estrangeiros Norte-Americanos,
fez o papel de todas as damas de honor e do resto dos convidados,
representou até – magnanimamente –
a minha família
que não ouviu falar de nada.
Eu só tinha convidado os seus antepassados.
E nem sequer confidenciei que te tinha roubado
a um amigo chegado. Para padrinho – o escudeiro
que pegasse nas alianças por um momento –
solicitamos o sacristão. Cúmulo da afronta:
Ele estava a meter crianças dentro de um autocarro
Para as levar ao Jardim Zoológico – debaixo daquele aguaceiro!
Os animais aprisionados tiveram de ter paciência
enquanto nos casávamos.
Estavas transfigurada.
Tão esbelta e nova e nua,
um agitado ramo úmido de lilases.
Tremendo, soluçando de alegria, eras a profundidade do oceano,
repleta de Deus.
Disseste que viste os céus abrirem-se
Mostrando riquezas, prestes a cair sobre nós.
Levitando ao teu lado, fiquei sujeito
a um tempo verbal estranho: o futuro enfeitiçado.

Na desolada ressonância daquele altar em dia de semana
vejo-te
a lutar para conteres as chamas
no teu vestido de malha cor-de-rosa
e nas pupilas dos teus olhos – grandes jóias cujas faces
eram lacrimosas chamas, na verdade grandes jóias
agitadas num copo de dados erguido para mim.

(Ted Hughes, Cartas de Aniversário. Trad. Manuel Dias. Lisboa, Relógio D’Água, 2000)

terça-feira, 1 de junho de 2010

Sur la "justice"


 
O papel de Paris como geradora tanto de ideias como de maneirismos, vogas e modas também contribui para o seu status de cidade grande. As cidades pequenas não estabelecem padrões internacionais de moral, não como Paris tem feito desde o século XVIII, quando os philosophes redefiniram o contrato social e Voltaire defendeu um criminoso condenado chamado Jean Calas, que ele acreditava ser inocente. Voltaire estava certo e conseguiu limpar o nome de Calas, fazendo valer a Paris a fama mundial de lugar onde a justiça sempre triunfa — ao menos se algum escritor famoso puder ser convencido a abraçar a boa causa. Um século depois o romancista Émile Zola confirmou a regra ao empunhar a pisoteada bandeira de Alfred Dreyfus, um oficial judeu do exército francês condenado por uma corte militar antissemita por vender segredos à Alemanha. Em 1894, Dreyfus foi mandado para a ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Anos mais tarde ele seria solto e, por fim, reabilitado, depois que Zola reabriu o caso na imprensa. (Uma reprodução do seu famoso artigo de primeira página, “J’accuse!”, foi projetado por inteiro na fachada da Assembleia Nacional, na noite de 13 de janeiro de 1998, em comemoração ao centenário do histórico evento.)
Suponho que essas duas histórias podem ser interpretadas mais como testemunho da importância dos escritores na França do que como evidência da justiça francesa. Com certeza o mundo anglófono nunca presenciou nada parecido com o julgamento do escritor Jean Genet, em 1943, pelas repetidas condenações por furto. Genet se deparava com a prisão perpétua como punição por ser um reincidente contumaz, mas Jean Cocteau, que havia descoberto Genet e providenciado a publicação de seu primeiro romance, Nossa Senhora das Flores, apresentou uma declaração que foi lida na corte: “Ele é Rimbaud, não se pode condenar Rimbaud”. Cocteau insinuou que o juiz entraria para a história como um filisteu se tomasse a decisão errada. Nem por um momento Cocteau argumentou que Genet era inocente, mas simplesmente que era um gênio. Seu testemunho livrou Genet, sem qualquer punição.
Esses casos exemplares, e mesmo surpreendentes, deveriam ser ponderados em contraste com a justiça peremptória e muitas vezes arrogante exercida sobre os cidadãos comuns. Na França, não há habeas corpus, e até pouco tempo atrás pessoas perfeitamente inocentes podiam ser mantidas durante meses, anos até, em prisão preventiva se um juiz considerasse que elas sabiam mais do que estavam dizendo. Como escreveu Mavis Gallant sobre o juiz na França: “Ele pode detê-lo até que você mude de ideia. Se, no fim, você for inocente, não há recurso contra a lei. Você não pode nem abrir um processo pleiteando a simbólica quantia de um franco por danos, ainda que a detenção preventiva lhe tenha custado o emprego, o equilíbrio doméstico e a sua reputação”. Nos anos 1960, com a eclosão da Guerra da Argélia, centenas de árabes definharam nas prisões francesas por longos períodos, sem nem sequer ser julgados, muito menos condenados.


(Edmund White, O flâneur: um passeio pelos paradoxos de Paris. Trad. Reinaldo Moraes. São Paulo, Companhia das Letras, 2001)