domingo, 26 de setembro de 2010

WabiSabi: coreografia + fotografia + poesia



(foto: Juliano Gouveia dos Santos)

Acabou de sair em Cronópios um trabalho que fiz com o fotógrafo Juliano Gouveia dos Santos a propósito do espetáculo WabiSabi, de 2008, da coreógrafa Susana Yamauchi.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Este pão que venho abrir

Este pão que venho abrir foi outrora centeio,
este vinho sobre uma ramada desconhecida
ficou submerso nos seus frutos;
o homem em cada dia, em cada noite o vento
arrancaram a alegria dos cachos e derrubaram as searas.

Com o vinho, outrora o sangue de estio
palpitava na carne que ornamentava a videira,
outrora neste pão
era feliz sob o vento o centeio;
mas o homem despedaçou o sol e abateu o vento.

Esta carne que despedaças, este sangue
que traz a desolação pelas veias,
eram os cachos e o centeio
nascidos das raízes e da seiva dos sentidos;
este meu vinho que bebes, este pão de que te alimentas.

(Dylan Thomas, trad. de Fernando Guimarães)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Mulher-dervixe


Mira Hunter dançando ao som de Mercan Dede

quinta-feira, 16 de setembro de 2010


Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.
Tudo o que amei, amei sozinho.
Assim, na minha infância, na alba
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.
Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;
e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;
e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,
só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demônio, ante meus olhos.


(Edgar Allan Poe, Ficção completa, poesia & ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro, Aguilar, 1965)

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Morro do Isolamento

O profeta mora em uma gruta do Morro do Isolamento. Os homens bebem cachaça, vinho nacional e cerveja. Compram remédios e querosene. Os homens bebem porque precisam ficar tontos. Todos, às vezes, precisam ficar bêbados, e por isso bebem. Quando as mulheres dos homens ficam desesperadas elas despejam querosene na roupa e se matam com fogo. O profeta sabe de tudo. Ele sabe que muitas famílias usam pratos no almoço e no jantar. Os pratos não são eternos. Cedo ou tarde eles se quebram. Às vezes são partidos quando a mulher está nervosa com o homem. Às vezes a culpa é de uma criança. Às vezes é de uma empregada. De qualquer modo eles se quebram; e às vezes toda a família se quebra em redor dos pratos quebrados. O profeta sabe. Ele passa a mão suja pela barba suja. Sai da gruta. Vai andando devagar. Desce o Morro do Isolamento e passeia pelos quintais miseráveis dos subúrbios de Niterói. Não, o profeta não vai roubar galinhas. Ele recolhe frascos vazios, pratos quebrados, leva para a sua gruta os cacos, as garrafas sujas e vazias. Espalha tudo pelo chão e medita, já possui, entre outras coisas, uma corrente de chuveiro. Achou-a no lixo. O profeta não tem chuveiro, e não pensa nunca em tomar banho. Mas achou aquela corrente e medita. O profeta às vezes sente fome. Possui uma pequena criação: uma cobra pequena e sem veneno, e um tatu enfermo. Os três vivem em boa paz na gruta do Morro do Isolamento, entre cacos de vidro, pratos quebrados, a corrente de chuveiro e meditações.
Às vezes as crianças muito pobres, os homens doentes e as mulheres feias vão ouvir o profeta. Muitos acreditam nele. Muitos não acreditam. Ele acredita. O Morro do Isolamento se povoa de crentes e descrentes. À noite, uns e outros descem o morro. O profeta faz uma festinha para o tatu. O tatu, muito enfermo, suspira tristemente. A cobra, a humilde cobra sem veneno, dá um bocejo e vai dormir. A gruta está escura. A noite lá fora está escura. Apenas existe uma luzinha tremelicando. É no cérebro do profeta. Ele passa a mão pela cara suja, pela barba suja. Na escuridão do Morro do Isolamento o profeta está se rindo devagarinho. Ele sabe de tudo. Lá na cidade, onde há luz elétrica, homens e mulheres, as garrafas se esvaziam e os pratos se quebram. A vida se quebra e se esvazia. E tudo fica sujo como a barba do profeta. Na escura gruta do Morro do Isolamento, o profeta está chorando devagarinho. Se a cobra fosse grande e feroz, e tivesse veneno mortal, ele diria:
- Vai, cobra, e morde e mata os homens ruins, só respeitando as crianças e os pobres.
Se o tatu não fosse doente e fosse enorme e terrível, ele diria:
- Vai, tatu, e cavouca a terra vil, e derruba as casas e só respeita as miúdas e miseráveis.
Mas na gruta escura do Morro do Isolamento a cobrinha sem veneno está dormindo, e o tatu está enfermo. O profeta passa a mão pela barba suja, deita na terra e começa a roncar. O ronco do profeta estremece o Morro do Isolamento, abala Niterói e o mundo.

(Rubem Braga, O conde e o passarinho. Rio de Janeiro, Record, 2002)