segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Uma visão do mundo

(Edward Hopper, Pennsylvania Coal Town)

O céu estava azul. Parecia música. Eu havia acabado de cortar a grama e o cheiro dela impregnava o ar. Isso me faz lembrar das declarações e promessas de amor que conhecemos na juventude. No fim de uma corrida, você se joga na grama ao lado da pista de saibro, quase sem fôlego, e o ardor com que abraça o gramado do colégio é uma promessa que seguirá pelo resto de seus dias. Pensando em coisas pacas, notei que as formigas pretas tinham vencido as formigas vermelhas e estavam retirando os corpos do campo de batalha. Um sabiá passou voando, perseguido por dois galos. O gato estava espreitando um pardal nos arbustos de groselha. Uma dupla de papa-figos passou se bicando e em seguida, a uns trinta centímetros dos meus pés, me deparei com uma cobra cabeça de cobre descascando o último pedaço da pele escura de inverno. O que senti não foi medo nem pavor; foi o choque da minha falta de preparo diante dessa variedade da morte. De repente surgia esse veneno mortal, tão pertencente à natureza quanto a água límpida correndo no riacho, mas era como se eu não tivesse espaço para ele em minhas considerações. Entrei em casa para buscar a espingarda, mas tive então o azar de topar com o mais velho dos meus dois cães, uma cadela que tem medo de armas de fogo. Assim que viu a arma, ela começou a latir e a ganir, atormentada sem dó por seus instintos e anseios. Seus latidos atraíram o outro cão, uma caçador nato, que veio saltando da escada pronto para ir buscar uma lebre ou pássaro, e, seguido pelos dois cães, um latindo de alegria e outro de horror, voltei ao jardim bem a tempo de flagrar a víbora sumindo dentro de um muro de pedra.
Depois disso, fui de carro à cidade, comprei um pouco de semente de grama e então fui ao supermercado da rota 27 para buscar os pãezinhos que minha mulher tinha encomendado. Acho que hoje em dia é bom ter uma câmera para gravar um supermercado numa tarde de sábado. Nossa linguagem é tradicional, um acúmulo de séculos de diálogo. Tirando o formato dos pães, não havia nada de tradicional à vista no balcão de padaria em que precisei aguardar minha vez. Éramos seis ou sete pessoas retidas por um velhinho com uma lista comprida, um pergaminho de compras. Espiando por cima de seu ombro, consegui ler:

6 ovos
hors-d’oeuvres

Ele notou que eu estava lendo o seu documento e o protegeu contra o peito, à maneira de um jogador de cartas cuidadoso. De repente, a música encanada mudou de uma canção romântica para um cha-cha-cha, e a mulher do meu lado começou a mexer timidamente os ombros e a executar uns passinhos de dança. “Gostaria de dançar, madame?”, perguntei. Ela era bem sem graça, mas quando estendi meus braços, ela se encaixou neles e dançamos por um ou dois minutos. Dava para ver que ela gostava de dançar, mas com uma cara daquelas não devia ter muitas oportunidades. Em seguida ela ficou muito vermelha, saiu dos meus braços e foi até o balcão de vidro, onde se pôs a analisar as bombas de creme. Senti que tínhamos dado um passo na direção correta e, depois de pegar os pãezinhos, dirigindo para casa, eu estava exultante. Um policial me parou na esquina da Alewives Lane para dar passagem a um desfile. A primeira a chegar foi uma jovem de botas e shorts que enfatizavam a formosura de suas coxas. Tinha um nariz enorme, usava um colbaque na cabeça e agitava um bastão de alumínio. Foi seguida por outra garota, de coxas ainda mais formosas e fornidas, que marchava com a pélvis tão projetada para a frente em relação ao resto do corpo que sua espinha fazia uma curva estranha. Usava óculos bifocais e parecia terrivelmente entediada pela projeção da pélvis. Uma banda de garotos, contendo aqui e ali um impostor grisalho, veio na retaguarda tocando “The caissons go rolling along”. Não carregavam faixas, não possuíam nenhum objetivo ou rumo discernível e tudo me parecia terrivelmente cômico. Fui rindo no caminho todo até em casa.
Mas minha mulher estava triste.
“Qual o problema, meu bem?”, perguntei.
“É só essa sensação horrorosa de que sou um personagem de um seriado cômico de televisão”, ela disse. “Afinal, sou atraente, sei me vestir, tenho filhos bonitos e estou de bem com a vida, mas tenho uma sensação horrorosa de que podem me desligar.” Minha mulher vive triste porque sua tristeza não é uma tristeza triste, infeliz porque sua infelicidade não é uma infelicidade esmagadora. Ela sofre porque seu sofrimento não é um sofrimento dilacerante e, quando lhe digo que essa infelicidade trazida pela inadequação da infelicidade pode ser um matiz novo no espectro do sofrimento humano, ela não se sente consolada. Oh, às vezes penso em deixá-la. Seria totalmente concebível construir uma vida sem ela nem as crianças, e eu poderia seguir em frente sem o companheirismo de meus amigos, mas não seria capaz de abandonar meus canteiros e jardins, não poderia me separar das portas de tela da varanda, que tanto consertei e pintei, e não posso me divorciar do caminho sinuoso de tijolos que construí ligando a porta lateral da casa às roseiras; e assim, por mais que minhas correntes estejam presas à grama e à tinta da casa, elas me prenderão até que eu morra. Na ocasião, porém, fiquei grato a minha mulher por ter dito o que disse, por haver atestado que as aparências da sua vida tinham o caráter de um sonho. As energias irreprimidas da imaginação haviam criado o supermercado, a víbora e o bilhete dentro da lata de graxa para sapatos. Comparados a isso, meus devaneios tinham a literalidade de um registro contábil de partidas dobradas. Agradava-me pensar que a nossa vida aparente tem o caráter de um sonho e que dentro dos nossos sonhos encontramos as virtudes do conservadorismo. Entrei em casa e encontrei a faxineira fumando um cigarro egípcio roubado e reconstruindo cartas rasgadas que haviam sido jogadas no cesto de lixo.


(John Cheever, 28 contos. Trad. Daniel Galera e Jorio Dauster. São Paulo, Cia das Letras, 2010)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O que li de mais bacana em 2010


1. André BERNARD, Madame Bovary, c'est moi! Trad. Fábio Fernandes. José Olympio, 2005.
2. Thomas BERNHARD, O imitador de vozes. Trad. Sérgio Tellaroli. Companhia das Letras, 2009.
3. Roberto BOLAÑO, Estrela distante. Trad. Bernardo Ajzenberg. Companhia das Letras, 2009.
4. Ray BRADBURY, Zen in the art of writing, Bantam Books, 1992.
5. Le CLÉZIO, Diego e Frida. Trad. Vera Lúcia dos Reis. Record, 2010.
6. Jonathan COE, A chuva antes de cair. Trad. Christian Schwartz. Record, 2009.
7. Alexandra Lucas COELHO, Caderno afegão, Tinta-da-China, 2009.
8. John FANTE, O vinho da juventude. Trad. Robeto Muggiati. José Olympio, 2010.
9. Ted HUGHES, Cartas de aniversário. Trad. Manuel Dias. Relógio D’Água, 2000.
10. Hiromi KAWAKAMI, Quinquilharias Nakano. Trad. Jefferson José Teixeira. Estação Liberdade, 2010.
11. William KENNEDY, Ironweed. Trad. Sérgio Flaksman. Cosac Naify, 2010
12. Jack KEROUAC, Os vagabundos iluminados. Trad. Ana Ban. L&PM, 2007.
13. José Tolentino MENDONÇA, A estrada branca, Assírio & Alvim, 2005
14. Chuck PALAHNIUK, Cantiga de ninar. Trad. Paulo Reis. Rocco, 2004.
15. José Miguel SILVA, Vista para um Pátio seguido de Desordem, Relógio D’Água, 2003.
16. Tzvetan TODOROV, A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Difel, 2009.
17. Enrique VILA-MATAS, O mal de Montano, Cosac Naify, 2005.
18. Edmund WHITE, O flâneur: um passeio pelos paradoxos de Paris. Trad. Reinaldo Moraes. Companhia das Letras, 2001.
19. Edmund WHITE, Rimbaud: a vida dupla de um rebelde. Trad. Marcus Bagno. Companhia das Letras, 2010.