quinta-feira, 27 de outubro de 2016

De pedra e areia

Ao conhecer Leila Guenther, inevitável pensar em sua herança oriental. Apesar do sobrenome do pai alemão, Leila tem ascendência japonesa por parte de mãe. E aí vêm os estereótipos sobre quem tem uma outra etnia e é mulher, no Brasil. Pensa-se primeiro na etnia e a seguir no gênero para tentar definira que grupo o autor pertence. Mas a poesia de Leila foge dos estereótipos, deixando-se tocar de leve pelo charme de pertencer a uma etnia milenar e ser feminina.
Viagem a um Deserto Interior é dividido em cinco partes: Paisagens de DentroO Deserto AlheioCastelo de AreiaUm Jardim de Pedra e A Possibilidade do Oásis. Cada parte está relacionada com um tema contemporâneo: solidão, o Outro, o estranhamento do cotidiano, o zen-budismo e amor. A autora publicou um primeiro livro, de ficção  O Voo Noturno das Galinhas pela Ateliê Editorial, que acaba de ser lançado em uma edição portuguesa.  O livro foi um dos 17 contemplados pelo Prêmio Petrobrás Cultural de 2012.

De acordo com o poeta e crítico Alcides Villaça, Viagem a um deserto interior contém “um espanto de vida a um tempo estoico e dilacerado, ressurgido de incêndios, vingando um calar histórico. Urro e desprezo podem acalantar a criatura ofendida, as inquietudes podem se abrigar numa forma zen, a paisagem contemplada pode guardar uma guerra dentro.” O deserto explicita a metáfora do esforço zen-budista, visto no jardim seco zen-budista. A mente é como o jardim e das pedras e areias pode surgir um mundo mais profundo. As angústias não deixem de ser belas, porque constituem a beleza da paisagem humana. Dominadas, nada resta a não ser contemplá-las, em doce abandono.

Leila Guenther é formada em Letras pela Universidade de São Paulo e autora do livro de contos O Vôo Noturno das Galinhas (Ateliê Editorial), traduzido para o espanhol (Borrador Editores) e em Portugal.  Este lado para cima,(Sereia Ca(n)tadora, Revista Babel). Participou de  antologias de contos e poesia.  Para os palcos de Robert Wilson, adaptou a peça A dama do mar, de Susan Sontag (N-1 Publications), baseada em Ibsen, e traduziu A velha, adaptação de Darryl Pinckney para uma novela de Daniil Kharms.




CIMENTO
Todas as fotos sumiram.
Seu rosto se desfez
como um muro aos poucos encoberto pelo musgo,
um muro cada vez mais rabiscado,
que vai perdendo a pintura,
até desabar com os anos de chuva e descuido
e deixar entrever a casa abandonada.

Uma foto apenas
- quase derruída -
reside em algum lugar de mim
tornado árido e áspero.
Um instantâneo
onde seu rosto se debruçava
sobre o meu
enquanto desaparecíamos.

Penso se o cachorro,
aquele cão que se perdeu na mudança,
hoje também se lembraria de seu rosto futuro.

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